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Como nossos pais? O caso Elis Regina e o testamento de Madonna frente a evolução tecnológica

Como nossos pais? O caso Elis Regina e o testamento de Madonna frente a evolução tecnológica

Escrito por João Pedro Ferraz Delgado . 19 . 07 . 2023 Publicado em Artigos

Por João Pedro Delgado 

 

Nos últimos dias tem tido grande repercussão a divulgação de campanha publicitária que “reviveu” a grande cantora de MPB Elis Regina, infelizmente falecida em 1982, através do uso de inteligência artificial, colocando-a ao lado da Filha, Maria Rita, cantando “como nossos pais”, de Belchior, enquanto dirigiam veículo fabricado pela marca, uma no modelo antigo deste, e a segunda no modelo novo. 

Na mesma semana, foi noticiado, pelo tabloide britânico “The Sun”, que a Rainha do Pop, Madonna, após ficar cerca de duas semanas internada na UTI devido a uma infecção bacteriana, reuniu seus advogados a fim de atualizar seu testamento, o qual demonstra certa preocupação dela com a preservação de seu legado póstumo. 

No que se refere ao primeiro caso, ao passo que alguns fãs da cantora brasileira se emocionaram com o dueto entre mãe e filha, outros levantaram questionamentos éticos sobre a manipulação digital de uma pessoa falecida em contexto fictício, além do fato de associar a imagem da artista, que se posicionava abertamente contra a ditadura militar ocorrida no país entre 1964 e 1985, com a marca, que supostamente apoiava referido regime político. 

A discussão tomou tamanha magnitude que o CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) instaurou processo ético em face da fabricante do veículo, onde serão analisados diversos aspectos, entre eles a eticidade do uso de inteligência artificial com o intuito de reproduzir imagem de pessoa falecida em cenas fictícias, a possibilidade de os herdeiros autorizarem o referido uso da imagem do (a) falecido (a), além de não conter alerta de que o conteúdo foi criado digitalmente. 

Já o segundo caso chamou atenção em razão de uma das disposições acrescidas ao testamento de Madonna, o uso de sua imagem após sua morte. A cantora externou que não autoriza a recriação de sua imagem através de inteligência artificial ou até mesmo por hologramas, preservando assim seu legado e evitando o “enriquecimento de empresários gananciosos em cima dele, protegendo assim sua relevância e impacto cultural”, nas palavras de sua equipe. No mais, redistribuiu igualmente o patrimônio, que soma mais de US$ 800 milhões, entre seus seis filhos. 

Ambos os casos esbarram em diversos panoramas do Direito, entre eles a regulamentação da inteligência artificial e direitos de personalidade. 

Na seara do uso de IA, Patrícia Sanches, presidente da Comissão Nacional de Tecnologia do IBDFAM, aponta que se mostra mais do que necessário que posicionamentos jurídicos sejam firmados envolvendo a utilização da referida tecnologia, seja para delimitar limites éticos, seja para coibir a utilização, sustentando que cabe a doutrinadores (as) desenvolverem teses para aplicação do direito posto, uma vez que o direito à imagem, à honra, à vida privada, não se extinguem com a morte, sendo transmitido aos herdeiros do falecido o direito de proteção a este. 

Sobre a matéria, já aprovado pela Câmara dos Deputados, o Marco Legal da Inteligência Artificial (PL 21/2020), atualmente aguardando análise pelo Senado Federal, estabelece fundamentos, princípios e diretrizes para desenvolvimento e aplicação desta tecnologia no Brasil. 

Quanto aos direitos dos herdeiros e os direitos de personalidade, lembra-se que aos sucessores da pessoa falecida, cabia a autorização, ou não, da divulgação de material ou conteúdo realizado pelo “de cujus”, ou seja, algo que efetivamente fez parte da construção da imagem de determinada pessoa. A controvérsia se mostra quanto ao fato de que com a IA, através da “deepfake”, explora-se a imagem em situações que não ocorreram, passando aos herdeiros a autorização da utilização da imagem post mortem, cabendo aos criadores e operadores da tecnologia o dever de respeitar limites éticos, caso autorizado. 

Ainda, caso não autorizado o uso da imagem da pessoa falecida, seja através de hologramas ou manipulação por inteligência artificial, como visto no caso de Madonna, cabe aos herdeiros respeitar a proibição bem como garantir o cumprimento do desejo da falecida em caso de inobservância deste. 

Neste tema, nosso ordenamento jurídico é claro em proteger a inviolabilidade do direito de imagem (art. 5º, inciso X, da Constituição Federal), e, em caso de abuso, garante aos herdeiros o direito de buscarem que cesse a lesão ao direito de imagem, bem como de receberem indenização pelo uso indevido, positivado no parágrafo único do artigo 12 do Código Civil, entretanto, sem tratar da hipótese específica quando do uso de tecnologia para a manipulação da imagem do (a) falecido (a). 

Referido assunto já é discutido há anos, uma vez que as imagens de artistas falecidos já foram utilizadas, como na turnê holográfica de Amy Winehouse e Whitney Houston, a aparição do rapper Tupac no festival Coachella, além da manipulação digital da imagem dos atores James Dean e Carrie Fisher, nos filmes “Finding Jack” e “Rogue One: Uma História Star Wars”, respectivamente. 

Nota-se, portanto, que o uso de inteligência artificial para “reviver” ou manipular imagem de pessoas falecidas, conta com escassa legislação genérica, pendendo de regulamentação através de norma específica, bem como tal assunto passou a preocupar grandes artistas, que certamente passarão a dar maior atenção a isso quando forem dispor de seu patrimônio através de testamento, visto que a tecnologia avança cada vez mais. 

Certo é que na época de nossos pais a tecnologia não havia evoluído desta maneira que nos é apresentada atualmente, sendo forçoso e de suma importância a discussão acerca das lacunas existentes em nossa legislação quanto a direitos que nascem em decorrência deste avanço, prevenido possíveis danos ou situações desconfortáveis que venham a ferir o direito de imagem ou personalidade das pessoas falecidas, devendo sempre prevalecer a respeitabilidade e razoabilidade.