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Código de Defesa do Consumidor sob a ótica do STJ: decisões recentes

Código de Defesa do Consumidor sob a ótica do STJ: decisões recentes

Escrito por Fernanda São Pedro Gusmão . João Pedro Ferraz Delgado . 13 . 07 . 2023 Publicado em Artigos

Por Fernanda Gusmão e João Pedro Delgado 

 

Introdução 

Nas situações triviais do mercado, não há dúvidas que no âmbito da relação entre consumidor e fornecedor, àquele pode estar em certa posição vulnerabilidade (técnica, informacional, econômica etc.). 

Diante disso, o Código de Defesa do Consumidor, regramento avançado e moderno, influenciado por legislações consumeristas estrangeiras, norteia-se, em regulamentar a relação consumidor-fornecedor, por óbvio, mas essencialmente em equilibrar essa relação, notadamente conciliar a tutela e a proteção do consumidor com o desenvolvimento econômico e tecnológico do país. 

Assim, em atenção à manutenção do equilíbrio da relação entre consumidor e fornecedor, destacam-se algumas decisões do STJ em que a responsabilidade do fornecedor foi afastada.  

REsp 1.891.498-SP – A inaplicabilidade do CDC em caso de resolução contratual de compra e venda de imóveis com cláusula de alienação fiduciária em garantia 

Ao final do ano de 2022, o STJ julgou Recurso Especial interposto a fim de se avaliar se em uma hipótese de resolução contratual de compra e venda de imóveis por inadimplência que são garantidos por alienação fiduciária, seria aplicável o CDC ou a Lei nº 9.514/97, a qual instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel. 

Ao final do julgamento, por decisão unânime, fixou-se o entendimento de que seria aplicável a Lei nº 9.514/97, por se tratar de lei específica, desde que a garantia de alienação fiduciária esteja devidamente registrada e o devedor seja constituído em mora. 

Desta forma, conforme estabelecido na lei mencionada, se vencida a dívida do imóvel sem o pagamento, no todo ou em parte, do valor acordado em contrato, a propriedade do imóvel se consolidará em nome do credor fiduciário, o qual levará o bem à leilão, com o objetivo de quitação do valor em aberto. Se arrematado o imóvel, evitando-se o enriquecimento ilícito, o valor excedente ao valor do débito quitado será entregue ao devedor, após pagos todos os encargos, tributos e contribuições condominiais. 

Caso fosse aplicado o CDC, de acordo com seu artigo 53, seria necessária a restituição de todos os valores pagos pelo devedor até o momento da inadimplência, uma vez que este dispositivo legal determina que a perda total de prestações pagas em contrato de compra e venda de imóvel garantido por alienação fiduciária em caso de resolução por inadimplemento seria nula. 

A tese firmada, possui efeito erga omnes, ou seja, será aplicável a todos os processos que versem sobre o tema. Ressalta-se que a decisão ainda não transitou em julgado, estando pendente de julgamento de Recurso Extraordinário, pelo STF. 

 

REsp 1.402.929-SP – Fabricante de medicamento não é responsável por reação adversa descrita na bula 

A 4ª Turma do STJ, em Acórdão publicado em abril desse ano, fixou o entendimento de que não cabe reparação civil ao consumidor que apresentou reação adversa causada por medicamento, se tal reação estava descrita na bula, ou seja, se o fornecedor houver cumprido seu dever de informação. 

O caso de origem cuidou-se de ação indenizatória por meio da qual a autora buscou a responsabilização do Laboratório fabricante do medicamento composto por dipirona, em razão de ter apresentado a chamada Síndrome De Stevens-Johnson, como reação adversa. 

A relatora, Ministra Maria Isabel Gallotti, esclareceu que a existência de reação adversa por si só não atrai o dever de indenizar o consumidor; para que haja a responsabilização do fornecedor nos termos do artigo 8° do Código de Defesa do Consumidor (CDC), é necessária a comprovação do defeito do produto, pois a Teoria do Risco do Negócio não é absoluta, integral ou irrestrita. 

É pacífico que os fármacos estão entre os produtos que apresentam riscos intrínsecos, nos quais os perigos são inerentes à própria utilização e decorrem da finalidade a qual se destinam, conforme prevê a excepcionalidade do caput do art. 8º do CDC.  

Portanto, o fornecedor cumprindo com seu dever de prestar informação de forma adequada e suficiente sobre os riscos do medicamento, não há que falar em defeito do produto, isto é, aplica-se a excludente de responsabilidade prevista no art. 12, § 3º, II, do CDC. 

 

REsp 1.759.745-SP – A legalidade da prática do puffing 

Recentemente, a Quarta Turma do STJ considerou válidas expressões exageradas utilizadas em marketing publicitário de grande marca de produtos alimentícios, como “ketchup mais consumido do mundo” e “melhor em tudo que faz”. Tais expressões são conhecidas pelo mercado publicitário como forma de destacar determinado produto. 

Tal recurso é conhecido como puffing, caracterizado pelo exagero publicitário a fim de chamar a atenção do consumidor ao produto. 

O Ministro Relator entendeu por não ser razoável proibir o fornecedor ou prestador de serviço de se autoproclamar como o melhor em sua fabricação ou área de atuação, especialmente em caso de não haver qualquer mensagem depreciativa em face de concorrentes.  

Pontuou, ainda, que mesmo quando utilizada de forma a atrair o consumidor mais ingênuo, tal recurso publicitário não se mostra capaz de tornar o anúncio enganoso, uma vez que o critério de avaliação do produto é pessoal e cabe a cada consumidor. 

 

REsp 1.900.843-DF – Não cabe a responsabilização de sócio que não contribuiu com o ato lesivo em caso de desconsideração da Personalidade Jurídica 

A 3ª Turma do STJ, em julgamento do Recurso Especial nº 1.900.843/DF afastou a responsabilidade do ex-sócio de uma empresa, que possuía somente uma dentre 46,48 milhões de cotas.   

  O caso concreto chegou ao STJ em recurso do ex-sócio contra decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), que o responsabilizou por dívida da Empresa, por meio do instituto da desconsideração da personalidade jurídica à luz da Teoria Menor.  

  Embora a aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica prescinda de prova de abuso ou fraude, bastando tão somente a caracterização obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, ainda assim, em regra, somente pode atingir o sócio incumbido da gestão da empresa. 

  Segundo o Acórdão, a desconsideração até pode atingir o sócio que, formalmente, não figura como administrador, mas exige a comprovação da presença de indícios de que ele contribuiu, ao menos culposamente, para a prática de atos de gestão. Para o Ministro Cueva, o ex-sócio, no caso, não desempenhou atividade de gestão, portanto, restou afastada e responsabilização.  

Vale lembrar, conforme destacado pelo Ministro Relator Paulo de Tarso Sanseverino, que a desconsideração, mesmo sob a vertente da denominada Teoria Menor, é uma exceção à regra da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, “instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos”, a justificar, por isso, a interpretação mais restritiva que o STJ tem conferido ao art. 28, § 5º, do CDC.  

REsp 2.020.811-SP – Possibilidade de aplicação do CDC em relação empresarial, caso demonstrada a vulnerabilidade 

É certo que o CDC se baliza frente a teoria finalista, estabelecendo como consumidor apenas a pessoa final da relação de consumo. Entretanto, em recente decisão, a Terceira Turma do STJ decidiu, de forma unanime, que para que haja a mitigação da teoria finalista, deve ser demonstrada a vulnerabilidade em relação empresarial entre a parte intermediária e o fornecedor. 

O caso em comento se deu em litígio entre plataforma de venda de ingressos que contratou empresa de intermediação de pagamento virtual originado na contestação pela plataforma de ingressos de cláusula contratual que previa a possibilidade de retenção de valores suspeitos de fraude pela intermediadora de pagamentos, sustentado que houve retenção indevida de cerca de 114 mil reais sem que houvesse comprovação de irregularidade. 

A Ministra Relatora pontuou que existe a possibilidade de se aplicar o CDC em casos em que o produto ou serviço contratado se destina ao desenvolvimento de atividade empresarial, desde que a empresa compradora/contratante ostente vulnerabilidade técnica ou fática diante do fornecedor, cabendo a este demonstrar a referida vulnerabilidade caso pretenda a incidência das normas do CDC, o que não se verificou no caso comentado. 

 

Conclusão 

Desta forma observa-se que o Superior Tribunal de Justiça possui diversos entendimentos fixados, nas mais diversas áreas, os quais devem ser adotados e aplicados pelas instâncias inferiores. Assim, imprescindível a presença de corpo jurídico especializado que desenvolva amplo estudo das teses firmadas nas instâncias superiores, garantindo a aplicação destas nos casos em que cabíveis.