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Somos todos de uma só raça: a humana

Somos todos de uma só raça: a humana

Escrito por Jéssica Acosta de Oliveira Pelle . 20 . 11 . 2023 Publicado em Artigos

Por Jéssica Pelle 

Reserva-se ao penúltimo mês do ano, em alusão ao dia do falecimento de Zumbi dos Palmeiras (20/11), o Dia da Consciência Negra, que foi instituída no Município de Sorocaba pela Lei Municipal nº 5.218/1996, se tornou feriado pela Lei Municipal nº 8.120/2007 e que agora abrange todo o Estado de São Paulo (Lei Estadual nº 17.746/2023). 

Na Justificativa do Projeto de Lei da supracitada Lei Estadual, consta que “O Dia da Consciência Negra é uma data de celebração e, também, de conscientização da população negra e todos em geral sobre a força, a resistência e o sofrimento que o povo negro viveu no Brasil desde a colonização.” 

Com efeito, tendo o Brasil tido formação colonial, com o fim da escravidão ocorrido somente em 1888, somente a partir da referida data é que se verifica manifestação esparsa de condição viabilizadora do Direito do Trabalho. 

Esse lastro histórico, infelizmente, produz consequências graves e sérias até os dias atuais, como comprova reportagem feita pelo Exame1, que aponta os seguintes dados: 

  1. Mulheres negras são as que se sentem mais inseguras;
  2. Brasil só teve um presidente negro;
  3. Negros são maioria no Bolsa Família;
  4. Joaquim Barbosa foi o primeiro presidente negro do STF, em 2012;
  5. Mulheres negras são mais atingidas pelo desemprego;
  6. Taxa de analfabetismo é duas vezes maior entre os negros;
  7. Renda dos negros é 40% menor que a dos brancos e;
  8. Menos de um terço dos candidatos a governador nas eleições de 2014 eram pardos ou negros.

Nessa senda, imprescindível, para dar cumprimento ao previsto no artigo 5º, caput, da CF2, a utilização dos chamados direitos de segunda geração, (direitos sociais, econômicos e culturais), que apresentam liberdades positivas, em vista do atendimento do princípio da igualdade. 

Exemplo claro dessa necessidade de buscar, ainda que timidamente, a diminuição desse racismo estrutural ainda presente no país, foram editadas as leis nos 12.711/2012 (que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio) e 12.990/2014 (que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União). 

É extremamente necessária a edição de normas que tem como escopo a busca pela igualdade material, como demonstrado, ainda, por matéria publicada em 2015, contendo os seguintes dados3: 

Hoje, pretos e pardos – 50,7% dos brasileiros – ocupam em torno de 30% do funcionalismo brasileiro, são 17,6% dos médicos e menos de 30% dos professores universitários. Já entre os diplomatas apenas 5,9% são pretos e pardos; entre os auditores da Receita Federal 12,3%; e na carreira de procurador da Fazenda Nacional, 14,2%. Esses dados mostram uma gritante desigualdade. 

Segundo estudo do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER), em abril/2014, a taxa de rotatividade para trabalhadores brancos era de 33,6% e da população economicamente ativa (PEA) negra de 44%. 

Quanto à composição da PEA ocupada, em torno de 63% dos empregos domésticos no País são ocupados por negros. Por outro lado, brancos detêm quase 60% dos postos com e sem carteira no setor público – como militares ou funcionários no setor público. Brancos são também quase 70% do total de empregadores do País […] 

Não obstante, em 2016, foram divulgados os seguintes dados4: 

Os negros, soma daqueles que se declaram pretos e pardos, pelos critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são maioria da população brasileira, 52,9%. Essa população, no entanto, ganha menos da média do país, que é R$ 1.012,25, segundo dados do IBGE de 2014. Entre negros, a média de renda familiar per capita é 753,69 entre os pretos e R$ 729,50, entre os pardos. Os brancos têm renda média de R$ 1.334,30. 

Os dados seguem apontando a desigualdade, o desemprego é maior entre os pretos (7,5%) e pardos (6,8%) que entre os brancos (5,1%). O trabalho infantil, maior entre pardos (7,6%) e pretos (6,5%), que entre brancos. 

As desigualdades sociais são reforçadas na educação. A taxa de analfabetismo é 11,2% entre os pretos; 11,1% entre os pardos; e, 5% entre os brancos. Até os 14 anos, as taxas de frequência escolar têm pequenas variações entre as populações, o acesso é semelhante à escola. No entanto, a partir dos 15 anos, as diferenças ficam maiores. Enquanto, entre os brancos, 70,7% dos adolescentes de 15 a 17 anos estão no ensino médio, etapa adequada à idade, entre os pretos esse índice cai para 55,5% e entre os pardos, 55,3%. 

No terceiro ano do ensino médio, no final da educação básica, a diferença aumenta: 38% dos brancos; 21% dos pardos; e, 20,3% dos pretos têm o aprendizado adequado em português. Em matemática, 15,1% dos brancos; 5,8% dos pardos e 4,3% dos pretos têm o aprendizado adequado. 

Ressalta-se que em 2012 a reserva de cotas em processo de seleção para ingresso em instituição pública de ensino superior foi questionada junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 186 / DF, que foi julgada improcedente: 

EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. 

I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. 

II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. 

III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa. 

IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro. 

V – Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição. 

VI – Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes. 

VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos. 

VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente. 

No referido julgamento, o então Ministro Joaquim Barbosa, inclusive, comparou o caso com o decidido nos Estados Unidos da América (EUA): 

[…] Volta e meia lemos, na imprensa brasileira, sobre esse tema que Vossa Excelência está abordando; alguns dizendo que essas ações afirmativas foram banidas nos Estados Unidos, ou banidas na Califórnia. 

Pela Corte Suprema dos Estados Unidos, há duas decisões fundamentais sobre o tema: uma de 1978, que é o Caso Bakke x Regents, que consagrou, confirmou a viabilidade constitucional da utilização do critério “raça” na seleção pelas universidades; e a decisão de 2003, que é o famoso Caso Grütter, que confirmou Bakke nesse sentido. 

Ayres Britto, Presidente do STF quando do julgamento, brilhantemente, afirmou que “A Constituição fala de raça numa única vez, no inciso IV do artigo 3º” e, brilhantemente, esclareceu qual o significado disso: 

Mas como fala, nesse mesmo dispositivo, “sem preconceito de raça e de cor”, é lógico que a interpretação só pode ser: preconceito de raça não é preconceito de cor. “Preconceito de raça” a Constituição usou para impedir que segmentos humanos não negros, por exemplo, os ciganos, os judeus, fossem vítimas de preconceito. Mas acontece que a Constituição não falou mais de raça, até porque, cientificamente, só há uma raça, a humana; não há raças humanas, isso também já está comprovado. O gênero humano, pronto. 

Aí a Constituição deixou de falar de raça e passou a falar de racismo, 

inclusive para criminalizá-lo, para criminalizar o racismo e para qualificá-lo por um modo tão de repúdio, de excomunhão, que o nivelou, nos seus efeitos danosos, deletérios, ao terrorismo. Está lá no artigo 4º, inciso VIII, “repúdio ao terrorismo e ao racismo”, pelos males que o racismo causa até à dignidade do país internamente e no contexto externo. 

E aí racismo já é uma figura de direito usada pela Constituição para proibir as duas coisas: para proibir o preconceito contra certos grupamentos humanos que se caracterizam por um modo incomum historicamente, considerando mais o sangue do que mesmo o território onde esses agrupamentos eventualmente se encontram – conforme eu disse dos ciganos e dos judeus notadamente -, a Constituição passou a usar racismo tanto para proteger esses grupos como, e sobretudo, para proteger a comunidade negra, as pessoas portadoras da cor negra. Foi o objetivo claro da Constituição e explícito. 

Porém a Constituição, no que fez muito bem, não se contentou com proibir o preconceito. Foi muito além. A Constituição entendeu que uma política punitiva ou repressiva, sancionatória, vedatória do racismo, era necessária, mas não era suficiente. Era preciso promover os nossos irmãos negros que historicamente acumularam desvantagens, perseguições humilhantes, ignominiosas. 

Ora, o princípio da igualdade não aponta para uma igualdade absoluta entre todos, pois é necessário desigualar os que se encontram em situação desigual, justamente para obtenção da chamada igualdade material, sendo famoso o brocardo de que “o princípio da igualdade busca igualar os iguais e desigualar os desiguais, na medida de suas desigualdades”. 

Cabe a todos, assim, contribuir para a erradicação completa da discriminação, inclusive aos operadores do Direito, com sinalização dos valores básicos da Constituição Federal.  

O Brasil, sabidamente, é um país com miscigenação singular e com reconhecida política, em sentido amplo, de combate à discriminação. 

Válido relembrar, aqui, que nosso país foi o primeiro fora da África a protestar contra o apartheid, o fazendo quando o clube de futebol Portuguesa Santista, em excursão ao mencionado continente, foi proibido de colocar em campo os jogadores negros do elenco, o que levou a equipe a recusar a participar de um jogo nessas condições, tendo Juscelino Kubitscheck manifestado expressamente que não concordava com o apartheid. 

Ainda na seara futebolística, foi amplamente divulgado na mídia de todo o planeta o caso o sofrimento suportado pelo brasileiro Vinicius Júnior na Espanha, com torcedores das equipes adversárias imitando macacos nos estádios; porém, ao contrário da belíssima atitude da Portuguesa Santista, a equipe que ele defende, o poderoso Real Madrid, segue normalmente nas partidas e ele continua suportando ofensas incabíveis. 

É imperioso que todos, inclusive os empregadores, como os clubes de futebol, mantenham um ambiente de trabalho sadio e saudável, não podendo ser admitida qualquer ação ou omissão nesse combate à discriminação. 

Importante ressaltar, também, que embora seja uma lamentável realidade a existência de vítimas de trabalho escravo5, aqueles que promovem essa repugnante forma de trabalho representam uma imensa minoria, pois há enormidade número de empresas que combatem o trabalho escravo, tendo, em 2005, sido criado o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil, o qual contou com quase cem empresas na luta pelo fim das condições degradantes de labor. 

Ainda, diversas empresas, até mesmo da região de Sorocaba/SP, adotaram o compliance, inclusive se utilizando do compliance trabalhista, ferramenta apta a implementação de utilização da ética empresarial, tudo em consonância com as normas existentes, mitigando o risco até mesmo de contratação de empresas terceirizadas e fornecedores ligados ao trabalho escravo. 

No início deste ano de 2023, a título de exemplo, ficou famoso caso envolvendo conhecidas vinícolas que mantinham contrato com empresa fornecedora de mão de obra que, segundo o Ministério Público do Trabalho, se utilizava de mão de obra em condições análogas à escravidão. 

É evidente que as normas legais (artigo 149 do Código Penal, princípio trabalhista da proteção etc.) e constitucionais (artigos 1º, 3º, 4º, 6º, 7º a 11, 170, 186, todos da Constituição Federal), bem como as convencionais (Convenções nos 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho), vedam o trabalho escravo e sancionam aqueles que o praticam. 

Com efeito, sob o prisma legal, o combate à discriminação pode ocorrer de duas formas: com normas proibitivas (como, por exemplo, a Lei nº 9.029/95, que protege os trabalhadores de práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho) e ações afirmativas (como as cotas para ingresso em serviço público). 

Exemplo prático de ação positiva que ficou extremamente conhecido no Brasil ocorreu com o Magazine Luiza, que elaborou programa de trainee com vagas destinadas aos negros, tendo havido diversos comentários apoiadores a tal atitude e outros invocando que a empresa estava se utilizando de prática discriminatória. 

Ora, a discriminação positiva, como visto, busca equilibrar situações que, pelos mais diversos motivos, inclusive históricos, acabam por excluir determinados grupos, sendo comumente chamada de Justiça Social. 

O direito do trabalho, reconhecidamente pela natureza social, possui grande responsabilidade no combate à discriminação, sendo matéria de relevância ímpar hodiernamente. 

O doutrinador Leone Pereira (in Manual de direito do trabalho, 3. ed., São Paulo: Saraiva), explica que: 

“A função social é a preocupação estatal da perpetuação da supremacia do interesse público em detrimento do interesse privado, de classes ou particular, bem como os adequando a sociedade atual, ao contexto social vigente e adotando-se a primazia da dignidade da pessoa humana”. 

Nesse sentido, o Tribunal Superior do Trabalho, valendo-se do princípio da não discriminação, decidiu que: 

INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DISCRIMINAÇÃO RACIAL. Comprovado o excesso do poder diretivo da reclamada, bem como o ato ilícito decorrente de discriminação racial praticada por seu empregado, resulta devida a reparação. O preconceito racial não é tolerado e deve ter inibição pela indenização reparatória contra o infrator do princípio constitucional que reza a igualdade. O sofrimento decorrente da discriminação racial, embora não possa ser mensurada a dor, faz necessário que o julgador determine o valor a ser pago pelo empregador pelo sofrimento causado ao empregado. Busca-se imputar ao empregador uma pena pelo ato ilícito e ao empregado atenuar o sentimento de injustiça. Decisão que tem fundamento o princípio da não discriminação racial não deve ser reformada. Recurso de revista não conhecido. 

(TST – RR: 167500-63.2008.5.04.0232). 

Tem-se, assim, que sob todas as esferas (e sob a ótica do Direito, especialmente o Direito do Trabalho, não poderia ser diferente), a discriminação é repudiada, cabendo a todo ser humano o papel de superar e fazer superar qualquer espécie de depreciação de qualquer pessoa, integrando todos em uma sociedade igualitária, com oportunidades de trabalho e salários iguais, em ambientes saudáveis, sob todos os aspectos. 

Por fim, tendo em vista que é inconcebível que ainda exista discriminação, mas que infelizmente não se pode fechar os olhos à realidade da triste existência, porém, crente que a evolução da sociedade caminha, ainda que a passos lentíssimos, para uma melhora nesse aspecto, deixa-se aqui o mais forte desejo de que a previsão da Ministra Cármen Lúcia, no julgamento da ADC 41 / DF (que discutia a constitucionalidade das cotas no sistema de ingresso no serviço público – que foi julgada procedente para declarar a integral constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014), em debate com o Ministro Roberto Barroso, efetivamente se concretize, diante do óbvio: “E provavelmente, Ministro, daqui a cinquenta anos, não vão entender o que nós estávamos fazendo aqui, tal a banalidade do tema.”